quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Os artifícios nada científicos do filme Interestelar

Ou melhor, as licenças poéticas que atrapalham a credibilidade de uma boa história

PEDRO LUNA


O buraco-negro de Insterestelar, com um planeta em sua órbita













Se fosse possível modificar uma única lei da natureza, eu escolheria mudar a Teoria da Relatividade de Albert Einstein. E modificaria a Relatividade por uma razão muito simples: ela impede que um dia se construam naves espaciais para viajar mais rápido que a luz. Sem essa premissa, e contando-se apenas com tecnologia de propulsão de foguetes atual, levaríamos 70 mil anos para atingir Alfa Centauri. Este é o sistema de estrelas mais próximo do Sol. Fica a 4,2 anos-luz de distância. Todas as demais estrelas que observamos no céu noturno estão mais longe ou muito mais longe.

Vale dizer que toda a ficção-científica, desde Jornada nas Estrelas até Guerra nas Estrelas, é baseada na negação de uma impossibilidade física. De acordo com Einstein, nada no universo pode viajar à velocidade da luz - quem diria então ultrapassá-la?

Esta é a impossibilidade primordial que impediria a Humanidade de abandonar a Terra diante de uma catástrofe ambiental como a que serve de pano de fundo ao filme Interestelar, de Cristopher Nolan. Com o planeta assolado por uma praga que destrói as plantações, causando a erosão do solo e tempestades de areia continentais, a única salvação seria abandonar a Terra. Mas ir para onde?

As opções no sistema solar são muito limitadas. Só há três destinos onde se pode encontrar água, essencial á vida. Marte é um deserto gelado cuja atmosfera é irrespirável. Europa, uma lua de Júpiter, é coberta por uma calota polar interminável. E a temperatura média na superfície de Titã, a maior lua de Saturno, é de 190 graus negativos.

Não, nosso destino não se encontra no sistema solar, mas além, num planeta como a Terra, orbitando alguma das bilhões de estrelas do céu noturno. Mas como chegar lá? Em Interestelar, optou-se por um buraco de minhoca, um portal cósmico que só existe em teoria. Ele foi imaginado por Einstein e seu colega Nathan Rosen e, em tese, seria uma forma de viajar de um ponto a outro do universo instantaneamente, rompendo assim a barreira da velocidade da luz. Mas se é verdade que as equações da relatividade permitem a validade dos buracos-de-minhoca, nada indica que eles existam e nenhum jamais foi detectado.


A nave de Insterestelar, entrando no buraco-de-minhoca

















Apesar disso, os roteiristas de Interestelar fizeram com que um providencial buraco-de-minhoca surgisse misteriosamente na órbita de Saturno. Ok, faz de conta que o tal buraco de fato existisse. Para cruzá-lo seria necessário enviar astronautas até ele. A tarefa é factível. A travessia duraria 2 anos e quatro meses. Chegando lá, como cruzar o buraco-de-minhoca?

Buracos-de-minhoca seriam a conexão entre dois buracos-negros situados em pontos distantes um do outro. Vale dizer que para viajar através de um deles seria necessário mergulhar num buraco-negro e ter a sorte de não ver a sua nave e o seu corpo completamente desintegrados durante o processo. Para sobreviver ao mergulho num buraco-de-minhoca, este teria que ser recheado por um tipo de matéria ou energia exótica, dotada de propriedades anti-gravitacionais e diferente de tudo o que conhecemos, e capaz de "estabilizar" as paredes do buraco, impedindo que desabassem. 


Se tal matéria existe, falta detectá-la. A energia escura, essa entidade desconhecida que seria a responsável pela expansão acelerada do universo, seria uma possibilidade. Mas, novamente, a energia é apelidada de escura porque nenhum astrônomo ou cosmologista faz a mínima ideia do que ela seja.

Os roteiristas de Interestelar imaginaram um portal cósmico perfeito. Os astronautas nele mergulham para sair numa galáxia distante do outro lado do universo. Lá eles encontram três planetas diferentes, três possibilidades de um porto-seguro para a humanidade.

No próximo post escreverei sobre cada um deles.


quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Qual é o tamanho do microcosmo?

Faça uma viagem fantástica ao coração da matéria



PEDRO LUNA

Na coluna Qual é o tamanho do universo?, convidei os leitores a construir uma imagem mental das dimensões do cosmo. Aqui faremos uma trajetória no sentido inverso. O destino é o coração da matéria. Por mais estranho que pareça, o
 caminho até o coração da matéria é muito mais longo do que aquele que leva às fronteiras do cosmo. Pode acreditar, e veja o porquê.

Embora as dimensões do nosso dia-a-dia percam qualquer significado quando comparadas às vastidões intergalácticas, ainda assim as dimensões do cotidiano são enganosas. Isto porque, proporcionalmente, o diminuto no coração da matéria é algumas ordens de grandeza mais vasto do que a distância que nos separa dos limites do universo. “Há muito espaço lá em baixo” (“There`s plenty of room at the bottom”), afirmou, em 1959, o físico americano e ganhador do Nobel, Richard Feynman. Ele fazia menção à vastidão de espaços vazios que se esconde no interior da matéria. É esta vastidão oculta que vamos explorar.

Aqui vale o ditado: uma imagem vale mais que mil palavras. Imagine uma trena de um metro de comprimento. Este metro é um cisco se comparado ao tamanho do universo visível. Agora, o sentido inverso. Se a maior estrutura que existe é o universo, a menor é o comprimento de Planck. É a menor unidade de comprimento da Física. Seu nome é uma homenagem ao fundador da Mecânica Quântica, o físico alemão Max Planck (1858-1947).

O comprimento de Planck era o tamanho do universo no instante do Big Bang. Foi a partir daquela escala, a mais diminuta de todas, trilhões de vezes menor do que um átomo, que o universo evoluiu. Mas qual seria o tamanho daquele cisco infinitesimal que os físicos convencionaram chamar de comprimento de Planck? É muito, muito, mas muito pequeno. O comprimento de Planck é 160 trilhões de trilhões de trilhões de vezes menor do que o metro, ou um número com 35 casas decimais depois da vírgula.

Vamos tentar imaginar o que seria algo tão pequeno assim.

Rumo à intimidade da matéria

1 - O METRO

Comprimento: 1 metro 
O metro é o ponto de partida de um passeio que terá várias paradas. Cada uma delas ocorrerá em um espaço 1.000 vezes menor do que o anterior.

2 - O SAL

Comprimento: 1 milímetro (mm) = 0,001 metro 
Do metro descemos ao seu milésimo, o milímetro. O diâmetro de um grão de sal é 0,5 mm. Não há desconforto em tentar visualizar esta dimensão, pois ela faz parte do nosso cotidiano, assim como fios de cabelo e cabeças de alfinete.

3 - A CÉLULA

Comprimento: 1 micrômetro (µm) = 0,000.001 metro 
Do milímetro vamos ao milionésimo do metro, que se chama micrômetro ou mícron. A microtecnologia é assim chamada porque opera na escala micrométrica. O micro é a unidade de comprimento básica da biologia. O diâmetro de uma célula de sangue é 7 µm. Este é um domínio invisível ao olho humano, que só pôde ser perscrutado a partir da invenção do microscópio, no século XVII.

4 – MOLÉCULAS E VÍRUS

Comprimento: 1 nanômetro (nm) = 0,000.000.001 metro
Encolhendo-se outras três ordens de grandeza chega-se ao nanômetro, a bilionésima parte do metro. A nanotecnologia tem este nome porque suas técnicas operam na escala dos nanômetros. O nanômetro é a unidade de comprimento de moléculas grandes, como o DNA, e dos vírus. O diâmetro do vírus da Aids é 90 nm. O domínio nanométrico só pôde começar a ser visualizado a partir dos anos 1930, com os primeiros microscópios eletrônicos.

5 – O ÁTOMO

Comprimento: 1 picômetro (pm) = 0,000.000.000.001 metro
A próxima parada desta miniaturização é o picômetro, a trilionésima parte do metro. Uma molécula de água mede 280 pm. O diâmetro de um átomo de hidrogênio, o menor, mais leve e abundante dos elementos químicos, é 25 pm. Este é o domínio observado através dos microscópios de varredura. Inventados nos anos 1980, são os mais avançados.

6 – O NÚCLEO ATÔMICO

Comprimento: 1 femtômetro (fm) = 0,000.000.000.000.001 metro
Quando as dimensões atingem a quadrilionésima parte do metro, o femtômetro, adentramos os domínios subatômicos. O diâmetro médio de um núcleo atômico, com seus prótons e nêutrons reunidos, é 10 femtômetros. Já o diâmetro de prótons e nêutrons é 1 femtômetro. Ou seja, o átomo é rigorosamente uma esfera vazia no centro da qual reside um núcleo 100 mil vezes menor onde se concentra quase toda a sua massa. Em torno do núcleo orbita uma nuvem de elétrons. Daí se conclui que o que chamamos matéria é um imenso conjunto de átomos que são, essencialmente, ocos e vazios.

Aqui começa o mundo invisível da matéria. Nenhum núcleo atômico jamais foi observado por um microscópio. Não observar não é sinônimo de não conhecer. Os domínios do quadrilionésimo do metro são investigados 24 horas por dia, 365 dias por ano e milhões de vezes por segundo, no interior do Grande Colisor de Hádrons (LHC), o acelerador de partículas em Genebra. Os físicos usam o LHC para acelerar prótons a velocidades próximas às da luz e então chocá-los de frente, para assim poder estudar os escombros das trombadas à caça de partículas subatômicas.

7 – ELÉTRONS E QUARKS

Comprimento: 1 attômetro (am) = 0,000.000.000.000.000.001 metro
O elétron, esse nosso companheiro tão cotidiano, é o responsável pela eletricidade e pelas tecnologias da era da informação. O diâmetro de um elétron é a quintilionésima parte do metro ou 1 attômetro. É o mesmo diâmetro dos quarks, as partículas subatômicas aprisionadas no interior de prótons e nêutrons. Novamente, perceba, o núcleo atômico é outra estrutura essencialmente vazia, pois cada próton e nêutron é composto por três quarks, cada qual mil vezes menor do que prótons e nêutrons. E do que são feitos os quarks? Essa é uma pergunta que os físicos procuram sem sucesso tentar responder há meio século. Se os quarks são ou não são indivisíveis, se eles são ou não são a porção mais fundamental da matéria, ainda não sabemos.

8 – NEUTRINOS ALTAMENTE ENERGIZADOS

Comprimento: 1 zeptômetro (zm) = 0,000.000.000.000.000.000.001 metro
Os neutrinos são partículas subatômicas ínfimas. São tão pequenos que quase não interagem com o restante da matéria do universo. A cada segundo, 60 milhões de neutrinos produzidos no Sol atravessam cada centímetro cúbico do seu corpo. Eles são tão diminutos que não interagem com nenhum dos trilhões de átomos aí existentes. O diâmetro de um neutrino altamente energizado é um sextilionésimo de metro ou 1 zeptômetro.

9 – O NEUTRINO DE BAIXA ENERGIA

Comprimento: 1 yoctômtero (ym) = 0,000.000.000.000.000.000.000.001 metro
O yoctômetro ou a septilionésima parte do metro, é o diâmetro de um neutrino de baixa energia. É a menor das partículas subatômicas. Se existe alguma partícula menor, ainda não foi descoberta nem prevista em teoria.

10 – O MILÉSIMO DO YOCTÔMETRO

Comprimento: 0,000.000.000.000.000.000.000.000.001 metro
Por que não há nome para uma unidade de comprimento mil vezes menor que o yoctômetro? É porque os métodos de observação atuais não alcançam distâncias tão curtas, logo esta medida não é utilizável, daí AINDA não ter nome.

11 – O MILIONÉSIMO DO YOCTÔMETRO

Comprimento: 0,000.000.000.000.000.000.000.000.000.001 metro
Idem - vale o descrito acima acima. A vastidão de vazios oculta no interior da matéria de que Feynman falou parece não ter fim.

12 - O BILIONÉSIMO DO YOCTÔMETRO

Comprimento: 0,000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.001 metro
Ibidem. Feynman era um gênio, um dos pensadores do século XX.

13 – O COMPRIMENTO DE PLANCK


Comprimento: 0,000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.000.16 metro
É o final da jornada microcósmica. O comprimento de Planck é 160 trilhões de trilhões de trilhões de vezes menor do que o metro. É o infinitamente pequeno, uma distância inconcebivelmente curta. Para os físicos defensores da Teoria das Cordas, é nesta dimensão que as tais “cordas” constituintes da matéria “vibrariam”, e da sua vibração ecoaria o mundo como o conhecemos. Mas nada disso foi provado. Por enquanto é tudo teoria. Não se sabe se as cordas existem.

O vazio universal

O comprimento de Planck é um limite universal - e um conceito teórico. Ele nunca foi observado, provavelmente nunca o será, e sua existência só é descrita por equações. Mas nada pode ser menor do que Planck.


Neste itinerário que parte das dimensões do nosso cotidiano até chegar ao âmago da matéria, o que salta aos olhos é o inacreditável, o quase incomensurável vazio ao qual chamamos matéria. Tanto nos mais íntimos recônditos do átomo quanto nas vastidões interestelares e intergalácticas, o que existe é o vazio - ou praticamente nada. Voltando ao Big Bang, antes dele não havia nada, e do nada brotou o tudo. E o tudo, o universo, é vazio. Logo, o nada ainda é o nada - à exceção das 400 bilhões de galáxias, com as suas centenas de bilhões de estrelas e planetas - e, claro, da vida que nos move.

Aos interessados em visualizar o que significaria uma viagem dimensional do Big Bang ao coração da matéria, sugiro uma visita ao site A escala do universo.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

"Somos poeira de estrelas"

Todos os átomos do nosso corpo e do universo que nos cerca foram forjados há bilhões de anos, no coração de estrelas que explodira



PEDRO LUNA

“Somos poeira de estrelas”. A frase é do cosmologista Carl Sagan (1934-1996) e foi celebrizada na série Cosmos, de 1980. Sagan era um cientista brilhante e divulgador da ciência melhor ainda. Ele tinha o dom de sintetizar em frases inspiradas todo o sentido do maravilhoso que percebia na observação do universo. Assim, a Terra tornou-se aquele “pálido ponto azul” (pale blue dot) onde vivemos, um grão rochoso contaminado pela vida e orbitando uma estrela comum, como tantas bilhões de outras, num braço de uma galáxia em espiral chamada Via Láctea, que se confundia com as outras bilhões de galáxias do universo.

Ainda assim, e apesar do nosso pálido ponto azul ser um nada no oceano cósmico, seja na tevê seja em seus livros Sagan fazia a Terra reluzir como um brilhante precioso, por ser o berço da vida como a conhecemos, o berço da nossa espécie e a espaçonave que nos transporta em uma valsa celestial. Ao afirmar e reafirmar a preciosidade do nosso planeta, Sagan jamais usou este argumento para defender o indefensável, que a vida seria exclusiva da Terra. Ele, mais do que ninguém, defendeu a certeza estatística incontornável de que o universo está coalhado de vida e civilizações avançadas. Sagan usou a literatura para ilustrar essa certeza, no romance Contato, de 1985. “O universo é um lugar muito, muito grande”, diz Jody Foster no filme homônimo de 1997. “
Se só existisse vida aqui na Terra, então o universo seria um enorme desperdício de espaço.”

Mas não é. A prova é que estamos aqui, usando a imaginação para entender a natureza e sonhar com as possibilidades de vida em outros mundos. Outra prova está na universalidade das leis da física, que tanto determinam a formação de espirais de espuma quando se mexe com a colherzinha numa xícara de café, quanto influem na dança das galáxias.

Os ingredientes da vida

Uma terceira prova de que o universo não é um enorme desperdício de espaço está na origem da matéria, a origem dos átomos aprisionados nas moléculas que constituem cada uma das 100 trilhões de células do corpo humano. Cada célula humana é constituída por uns 10 quadrilhões de átomos. E cada um destes foi forjado no coração de estrelas há muito extintas.

Não estou me referindo apenas aos átomos do seu e do meu corpo, mas também aos átomos de toda a humanidade, de todas as formas de vida, dos vírus à baleia-azul, assim como o ar que respiramos, o sapato que calçamos, o solo onde pisamos, a crosta terrestre que flutua sobre o manto de rocha liquefeita que forma a interior da Terra, os outros planetas do sistema solar, os bilhões de planetas das 400 bilhões de estrelas da Via Láctea, apenas uma entre as 100 bilhões de galáxias do universo visível... Todos estes átomos foram forjados no núcleo de estrelas que explodiram.

O oxigênio e o nitrogênio que respiramos; o carbono que é a base da vida; o cálcio de nossos ossos; o sódio, o fósforo, o magnésio, o iodo e o potássio essenciais ao organismo; o ferro e o alumínio das máquinas; o cobre dos fios elétricos e o silício dos computadores... Todos estes elementos químicos saíram da fornalha atômica de supernovas, estrelas gigantes que, ao esgotar seu combustível, explodiram, semeando na vastidão interestelar os ingredientes dos planetas e da vida.

A vida evoluiu na Terra há mais de 3 bilhões de anos. Já a matéria que constitui a vida é muito mais antiga. Os elementos químicos forjados nas supernovas tiveram que vagar por bilhões de anos no espaço em nuvens de poeira interestelar. Eventualmente, a atração gravitacional em algum ponto de uma nuvem forçou o início de um processo de concentração, atraindo os átomos da nuvem e concentrando-os num local que viria a atingir densidade e temperatura incríveis. Quando, naquele ponto da nuvem, os átomos de hidrogênio se encontravam tão próximos uns dos outros a ponto de se fundir - e a temperatura se elevou acima de 10 milhões de graus - quatro átomos de hidrogênio se fundiram para formar outro, de hélio, liberando energia. Esta energia precipitou a fusão de outros átomos de hidrogênio, desencadeando uma reação nuclear em cadeia. Nascia o Sol.

Com os planetas a história foi diferente. As porções da nuvem que estavam afastadas o suficiente do Sol para não ser tragadas pela sua atração gravitacional acabaram por se condensar na forma de planetas. Ali os elementos químicos forjados há bilhões de anos no seio de supernovas puderam dar início à geologia e à vida.

O universo surgiu no Big Bang, a explosão primordial que lançou matéria e energia em todas as direções há 13,7 bilhões de anos. A temperatura infinita da explosão primordial foi suficiente para forjar apenas três elementos: vastas quantidades de hidrogênio e de hélio, e uma porção mínima de lítio. São os elementos mais leves, de números atômicos 1, 2 e 3, respectivamente, pois o átomo de hidrogênio possui apenas um próton em seu núcleo, o hélio tem dois e o lítio, três.

Todos os demais elementos químicos, do 
berílio de número 4 ao urânio 92, saíram de três gerações de supernovas que se sucederam desde o início dos tempos. Sua criação seguiu dois passos: a forja e a explosão.

O elemento mais abundante do universo é o hidrogênio. É o combustível nuclear das estrelas. Uma estrela pequena como o sol irá queimar o seu estoque de hidrogênio por 10 bilhões de anos (já se passaram 5 bilhões...) até o combustível esgotar e o Sol começar a se contrair e resfriar, tornando-se uma estrela anã-branca.

As estrelas cuja massa é, no mínimo, oito vezes maior que a do Sol têm uma vida mais curta e uma morte espetacular. O hidrogênio da estrela vai queimando e formando hélio. A fusão libera a cada instante uma energia equivalente a milhões de bombas atômicas explodindo simultaneamente. É esta energia incrível emitida do núcleo da estrela que impede que suas camadas externas despenquem em direção ao núcleo sob o efeito da gravidade. Assim, uma estrela pode ser definida como a luta incessante entre a fusão nuclear e a força da gravidade - um luta aonde a gravidade sempre vence.

No caso de estrelas muito grandes, a energia liberada no núcleo precisa ser maior para compensar a força gravitacional, que é também maior, dado o volume da estrela. A estrela começa queimando hidrogênio a 10 milhões de graus e produzindo hélio. A temperatura no núcleo vai aumentando até que o calor e a pressão sejam suficiente para começar a fundir átomos de hélio. O processo se repete como nos degraus de uma escada. Cada novo elemento precisa de temperaturas maiores para fundir e criar o elemento seguinte da tabela periódica. Assim chega a vez do elemento 6, o carbono, do oxigênio 8, do silício 14, do cálcio 20, e, por fim, do ferro 26. Neste ponto, a temperatura no interior da estrela é de mais de 1 bilhão de graus. Quando a estrela começa a produzir ferro, seu destino está selado.

A explosão vital

O fim da estrela chegou. Ao tentar fundir átomos de ferro, a reação deixa de produzir energia suficiente que mantém a coesão da estrela. Em sentido contrário, a fusão do ferro absorve energia. É o momento em que a descomunal atração gravitacional da estrela vence esta queda-de-braço, o instante em que a fusão nuclear acaba, e as camadas externas da estrela desabam livremente em direção ao núcleo. Em segundos, toda a estrela implode em direção ao seu núcleo. Mas como não há espaço para todo aquela matéria ocupar o mesmo lugar no núcleo, a estrela explode em supernova.

As supernovas são as explosões mais cataclísmicas conhecidas dos astrônomos. No momento em que acontecem, alcançam temperaturas de centenas de bilhões de graus, suficiente para forjar todos os demais elementos naturais, do cobalto 27 ao urânio 92.

Quando a supernova ejeta ao espaço as suas camadas externas, ela está semeando o espaço interestelar com os elementos químicos que forjou. É a “poeira de estrelas” que Sagan tão bem descreveu de forma poética, a “poeira de estrelas” que um dia circulará em nosso sangue.

PS:

Os demais elementos, todos mais pesados que o urânio 92, não existem na natureza. Se foram criados no Big Bang ou em explosões de supernovas, desapareceram no instante seguinte. No caso do plutônio (o elemento 94), ele surge na forma de lixo das usinas nucleares.

Já os novos elementos de número 113 (ununtrium) e 118 (ununoctium), recém-descobertos em 2010, são artificiais, assim como todos os elementos mais pesados que o urânio, à exceção do plutônio. Eles foram detectados durante os seus poucos milionésimos de segundo de existência, no meio dos escombros das colisões de átomos no interior dos aceleradores de partículas. Estes elementos são absurdamente instáveis. Só existem por um instante, decaindo assim que são criados para formar outros elementos estáveis, aqueles que constituem a matéria do universo em que vivemos.


sábado, 18 de outubro de 2014

O mestre-artesão dos violinos

O pernambucano Saulo Dantas-Barreto aprendeu a criar violinos na melhor escola da Itália, e agora transmite o ofício a alunos brasileiros

PETER MOON

Nem parecia uma oficina de marcenaria. Onde estava a serragem que deveria se espalhar pelo chão? E o cheiro de madeira recém cortada? Pela parede caiada serpenteiam diversos tubos de PVC. São os tentáculos de um original aspirador de pó. Suas bocas, seladas, terminam em diversos pontos de uma longa bancada de trabalho sobre a qual se vê algumas ferramentas: uma minúscula serra tico-tico, uma furadeira, uma lixadeira, uma plaina e uma pistola de tinta. Acopladas às ferramentas há pequenos prendedores e adaptadores feitos à mão, assim como várias lentes de aumento. Do outro lado da sala, através de um piso imaculado, fica o torno e um outro tentáculo de PVC. E, sob a bancada, o precioso estoque de abeto e ácero, madeira seca e clarinha importados da Itália. 

Penduradas na parede há diversas fôrmas vazadas. São cheias de curvas e sensuais. Pequenas, médias e grandes, têm a silhueta de violinos, violas e violoncelos. Trata-se do único indício de que o local não é uma oficina de precisão mecânica, mas um ateliê de luteria, uma oficina de fabricação de instrumentos de corda. Aqueles são os domínios do pernambucano Saulo Dantas-Barreto, de 48 anos.

Dantas-Barreto é talvez o melhor luthier brasileiro em atividade. Ele se considera a um só tempo um músico, um mestre-artesão e um artista. Músico, porque estudou violino em João Pessoa. Mestre-artesão, porque se formou na melhor escola de luteria, a Scuola Internazionale di Liuteria “A. Stradivari”, em Cremona. “O luthier é um artista que trabalha para outros dois artistas, o músico e o compositor,” diz Dantas-Barreto. “O luthier produz o instrumento que permite ao intérprete criar música a partir de uma partitura”.

Entre os séculos XVI e XVIII, Cremona foi o berço dos melhores e mais valiosos violinos, as obras-primas marchetadas e envernizadas pelas famílias Amati, Guarneri e Antonio Stradivari (1648-1737), o maior de todos. Ele construiu 1.100 instrumentos, dos quais sobreviveram uns 500. Após a morte de Stradivari, a fabricação de violinos em Cremona começou a declinar. No início do século XIX, não havia mais luterias. As técnicas de fabricação dos mestres cremoneses desapareceram com eles. Foi só em 1937, nos 200 anos da morte de Stradivari, que o ditador Benito Mussollini decidiu criar uma escola de luteria em Cremona para resgatar um passado glorioso.

Desde a sua fundação, a escola formou mais de 800 luthiers, os melhores do mundo. Atualmente o mais concorrido é o alemão Stephen-Peter Greiner. Com pouco mais de 40 anos, Greiner construiu 350 instrumentos e cobra de US$ 50 mil a US$ 60 mil cada. Não faltam clientes. A fila de espera é tão grande que supera a expectativa de vida do saudável luthier de Bonn.

Dantas-Barreto formou-se em Cremona em 1992. Em 1996, construiu um quarteto de cordas (2 violinos, viola e violoncelo) que ofereceu de presente à rainha Sofía da Espanha. O “Quarteto da Rainha” integra a coleção de instrumentos do Palácio Real de Madri, ao lado de um Stradivarius. Em 2000, voltou ao Brasil com a mulher italiana e três filhos. Foi morar em Vinhedo, perto de Campinas. Todos os dias, ele vem a São Paulo, onde mantém seu ateliê na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP) e começa a transmitir seu ofício a alunos brasileiros. Dantas-Barreto também é o luthier oficial a organizadora do Festival de Inverno de Campos do Jordão.

Seu ofício é lento e meticuloso. Dantas-Barreto pega um pedaço de abeto, ou pinho de Veneza. Tem uns 40 cm de comprimento e a forma de uma fatia de bolo de aniversário. “Esta peça de madeira ficou secando 15 anos. Ela custa US$ 1.500.” Assim como o escultor que enxerga a futura obra aprisionada no interior de um bloco de mármore, Dantas-Barreto diz: “Aqui dentro tem um violino”. O abeto é usado para o tampo do instrumento. Seu braço, as laterais e o fundo são feitos com outra madeira, o ácero. Um violino é feito com 70 peças coladas e envernizadas. Leva no mínimo três meses para ficar pronto. “É preciso ser escultor, pintor, músico e um pouco químico, para fazer o verniz.”
O luthier fez 46 instrumentos, entre violinos, violas, cellos e rabecas brasileiras. “Não faço contrabaixos nem arcos. Para eles, há luthiers específicos. Fiz também uma cópia da única harpa conhecida de Stradivarius, uma pequena arpa guardada no Conservatório de Nápoles.”

Entre os artistas que usam instrumentos de Dantas-Barreto está o rabequeiro pernambucano Antônio Nóbrega, e o violoncelista grego radicado em São Paulo Dimos Goudaroulis. “Tenho um cello italiano do século XVII, um cello alemão e outro francês do século XVIII. Eu os uso para tocar música antiga. Para a música contemporânea, prefiro o cello do Saulo,” diz Goudaroulis. Um violino de Dantas-Barreto não sai por menos de R$ 20 mil. Uma viola, R$ 25 mil. Um cello custa R$ 40 mil. “O Saulo faz instrumentos com desenhos. Escreve poemas dentro deles!”, diz Goudaroulis. “Eles são excelentes. O Saulo é um doido.”

“Os instrumentos temáticos são uma criação minha,” diz Dantas- Barreto. São trabalhos impecáveis de inspiração, pesquisa, machetaria e pintura. No violino “Floresta do Amazonas” há um tucano e uma borboleta. O violino “Ben-Gurion” traz a estrela de David e trechos de salmos em hebraico, ladino, alemão e francês. O violoncelo “Aleijadinho”, encomendado por um empresário paulista, é ilustrado com imagens dos apóstolos do escultor mineiro. Levou um ano para ficar pronto. O resultado rendeu um livro, lançado em julho. Mas será que a machetaria alterou o instrumento?

“Quando vi o Aleijadinho, me surpreendi,” diz o violoncelista pernambucano radicado na Suíça Antônio Meneses. “A ornamentação é instigante, provocativa. Mas o que me interessava era saber se soava bem. Sim, o som é perfeito. Para um músico brasileiro, tocar um bom instrumento brasileiro é uma emoção indescritível.”

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Ebola: como evitar uma pandemia

A epidemia do vírus ebola no Oeste da África parece estar fora de controle. O que fazer para impedir que a doença se torne um flagelo mundial?

PEDRO LUNA

"Desculpe, nada de apertos de mão. Um sorriso serve", lê-se na Libéria.















A situação no Oeste da África contina a se deteriorar rapidamente. A epidemia causada pelo vírus ebola que começou em dezembro com a morte de um menino de dois anos evoluiu ao ponto de produzir mil novos casos por semana. As previsões não são nada animadoras. Segundo Bruce Aylward, o vice-diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) e encarregado do combate à epidemia, se a resposta mundial à crise não aumentar significativamente nos próximos 60 dias, “muitos mais irão morrer”. Quantos? Aylward estima em 10 mil novos casos por semana, com ao menos 5 mil mortos. E alerta: a mortalidade do vírus, que era de 50%, está chegando aos 70%. Ou seja, sete em cada dez novos doentes poderão morrer.

Este artigo parece catastrofista. Não é. Estou apenas repetindo dados que já foram confirmados e divulgados pela OMS. E isto suscita algumas questões de muita gravidade. Ora, como a OMS pode estimar um aumento exponencial de mil novos casos por semana para 10 mil, apesar de todo o sacrifício do pessoal da OMS e de organizações como o Médicos sem Fronteiras que combatem a epidemia? A resposta é que a epidemia está fugindo do controle das autoridades sanitárias - se é que já não fugiu. Até o momento foram confirmados 8.973 casos na Guiné, Libéria, Serra Leoa. Deste total, 4.484 já morreram. Uma epidemia que foge do controle pode eventualmente receber uma nova denominação: pandemia. 

Conheça a diferença entre os dois termos. Segundo os manuais de medicina, “uma epidemia ocorre quando da existência de mais casos de uma doença do que seria esperado dentro de uma comunidade ou região ao longo de um dado período de tempo” (leia aqui). Já “uma pandemia [do grego pan (tudo) + demos (povo)] é uma epidemia de doença infecciosa que se alastra pelas populações através de uma grande região, como um continente ou até mesmo o mundo” (aqui).

Por esta definição, a epidemia de ebola no Oeste da África está se aproximando de um limiar muito perigoso. Já foram registrados 20 casos na Nigéria, um no Senegal, um na Espanha e 3 nos Estados Unidos. Os casos americanos e espanhol são exemplares, porquê demonstram como o vírus é infeccioso. Apesar de não ser transmissível pelo ar, como o vírus da gripe, o ebola foi capaz de romper todas as barreiras sanitárias impostas no interior das unidades de terapia intensiva de duas instituições de renome, o Hospital Presbiteriano de Dallas, no Texas, e o Hospital Carlos III, em Madri. No caso americano, duas enfermeiras se infectaram ao cuidar do liberiano Thomas Eric Duncan, que morreu no dia 8 de outubro. O mesmo ocorreu em Madri com outra enfermeira. Ora, se o vírus é capaz de vencer barreiras de isolamento em instituições-modelo, o que dirá dos postos improvisados de atendimento na África?

Imagem do vírus ebola ampliado milhões de vezes

















A hora de a comunidade mundial agir contra a expansão da doença é agora. Não se pode perder mais nenhum instante. Os países ricos e os não tão ricos assim - é o caso do Brasil - precisam contribuir imediatamente com pessoal, medicamentos, material hospitalar, hospitais e tendas de campanha, assim como caixões invioláveis e incineradores - além de bilhões (e não ínfimos milhões) de dólares de ajuda aos países atingidos e todos os seus vizinhos. 

Do seu lado a OMS e o FDA, a agência do governo americano responsável pela fiscalização dos remédios e alimentos, já iniciaram em passo acelerado os testes clínicos em humanos de vacinas em potencial, assim como de drogas experimentais que poderiam combater o ebola. A mais promissora se chama ZMapp. Ela foi administrada a dois americanos infectados na África e, ao que parece, salvou suas vidas.

Quando, e se, a epidemia vier a ser controlada e o risco de uma pandemia for evitado, a ajuda humanitária aos países mais miseráveis da África deve persistir, pois o ebola não terá desaparecido. Seu habitát é o organismo de morcegos que habitam toda a África equatorial, do Congo ao Quênia, do Senegal até Uganda. Há centenas de bilhões desses morcegos nas cavernas e florestas. É impraticável exterminá-los. A única solução é o desenvolvimento de uma vacina eficiente contra o vírus. 

leia também: O pesadelo número dois dos epidemiologistas

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Vovô faz 100 anos

Lembranças de meu avô, um cabo da Legião Estrangeira

PEDRO LUNA

Ray Milland, Gary Cooper e Robert Prestonem Beau Geste (1939)

















Eu tinha um grande sonho quando criança. Ao completar 18 anos, embarcaria num navio cargueiro no porto de Santos para seguir até Marselha, na França. Tinha que ser um cargueiro. Jamais imaginei um navio e passageiros muito menos um avião. Foi de navio que meus avós vieram ao Brasil. Seria assim que eu faria o caminho de volta à Europa. A travessia teria um único propósito: alistar-me na Legião Estrangeira. Eu seria um legionário como o meu avô.

Lassu Gyuló nasceu em Budapeste em 1910. Aos 18 anos, imigrou para a França. No ano seguinte, 1929, a Bolsa de Valores de Nova York quebrou, e o mundo mergulhou na grande depressão. Gyuló, ou Júlio, se viu no olho da rua. Sem trabalho nem dinheiro, chegou a passar fome, como me contou décadas depois. Para poder comer, ele se alistou na Legião.

A Legião é uma tropa de elite do exército francês. Foi criada em 1831 pelo rei Luís Felipe como forma de retirar das ruas e Paris os milhares de arruaceiros e criminosos provenientes de toda a Europa. Àqueles que não quisessem ir para a cadeia, ou enfrentar a guilhotina, era colocada a oportunidade de servir a França na Legião, defendendo suas colônias na África, Indochina e América Central.

A Legião foi idealizada como uma tropa de assalto, a primeira a entrar em combate e a última a sair dele. Assim, não foi por acaso que, em seus 180 anos de existência, a Legião tenha sido repetidamente a unidade do exército francês com o maior número proporcional de baixas, entre mortos e feridos. Na Guerra da Indochina (1946-1954), por exemplo, dos 70 mil legionários que lá combateram, 11 mil morreram.

Não foram poucas as vezes em que a ordem de lutar até o último homem foi levada a cabo. A primeira delas foi na batalha de Camarón, na fracassada tentativa francesa de dominar o México, em 1863. Em 30 de abril, o tenente D'Anjou e 64 legionários foram cercados por 2.000 mexicanos. A luta começou às 7 da manhã e prosseguiu ao longo de todo o dia. Eram 6 da tarde quando o último cartucho foi disparado. Só restavam cinco legionários vivos. Reza a tradição que os cinco homens calaram as baionetas nos fuzis, pularam das trincheiras e investiram contra o inimigo. Diante deste ato de bravura, o comandante mexicano ordenou que suas vidas fossem poupadas.


Uma ilustração do romance Beau Geste (1926), e um legionário em 1852














O alistamento

Não há conscritos entre os legionários. Ninguém é convocado. Todos são voluntários. Até a década de 1930, os oficiais do alistamento nada perguntavam sobre a vida pregressa do recruta. Também não era exigido qualquer tipo de identidade. Bastava a palavra. “Um amigo meu se chamava pot de vin”, disse certa vez meu avô. ‘Pot de vin’, como vim a descobrir, é uma gíria em francês para a palavra suborno. “Foi o nome que ele deu ao se alistar. Era assim que nós o chamávamos”.


Se você dissesse que seu nome era João da Silva, João da Silva você seria pelos cinco anos seguintes. Este era, e continua sendo, o tempo mínimo de alistamento, um período longo ao término do qual o legionário ganha o direito à cidadania francesa.

O fato de a Legião ter servido de porto-seguro a criminosos e foragidos da Justiça inspirou romances como Beau Geste (1926), a história do aristocrata inglês que faz um "belo gesto" ao assumir a culpa por um crime que não cometera para salvar as aparências da família. Para não ser preso, Michael Geste busca refúgio na Legião, onde é vítima de um sargento sádico. Beau Geste foi levado ao cinema três vezes. A versão célebre é a de 1939, com Gary Cooper no papel principal.

Desde o fim da II Guerra Mundial a Legião não aceita criminosos. A vida pregressa do voluntário é checada em busca de antecedentes criminais – a mudança ocorreu para impedir o alistamento de nazistas. Mas esta não foi a regra por 120 anos. Por causa do passado de seus integrantes, os oficiais da Legião, todos eles franceses, precisaram desde a formação da unidade manter uma disciplina particularmente severa, tão férrea que se tornou lendária.

Isto me lembra algo que vi em 1991. Os Estados Unidos e seus aliados, entre eles a França, se preparavam para invadir o Kuwait e expulsar as tropas de Saddam Hussein, na Primeira Guerra do Golfo. Lembro ter assistido na CNN a entrevista com um americano que servia como legionário. O sujeito era um ex-marine, o corpo de fuzileiros navais, a tropa de elite dos Estados Unidos. Era um daqueles homens que não conseguem viver longe do exército. Ele estava na Legião havia dois anos. Com a experiência adquirida, garantiu sem vascilar: “Os marines são uns frouxos!” 



Não sei se os marines são frouxos. Só sei as poucas histórias que meu avô me contou sobre os seus anos na Legião. Em 1930, Lassu Gyuló se alistou em Marselha com o nome de Jules Antoine Lassu. De Marselha, seguiu para o quartel-general da Legião, que ficava em Sidi Bel Abbes, na Argélia. Foi lá que recebeu seu treinamento, antes de ser enviado a Marrakesh, no Marrocos.

Em 1912, o Marrocos havia sido retalhado entre espanhóis e franceses. As tribos tuaregues do Saara lutavam contra os invasores. Entre 1920 e 1925, os tuaregues trucidaram 15 mil espanhóis. Aí vieram os franceses. Ao custo de 25 mil baixas, em sua maioria legionários, a França conseguira controlar o Marrocos em 1930.

Entre 1930 e 1935, os anos que meu avô viveu em Marrakesh, a guerra tinha sido vencida e o trabalho era de pacificação. Não quer dizer que tenha sido tranquilo. Longe disso.

Júlio falava com saudade da Legião, dos amigos que fez e das dificuldades que enfrentou. Os legionários viviam em treinamento, e eram comuns marchas forçadas de 50 quilômetros pelo Saara, carregando equipamento completo de 40 quilos num calor de 50 graus. Numa dessas marchas, a tropa subiu os montes Atlas, uma cordilheira que separa o Marrocos no meio. Mesmo em meio ao Saara, no inverno há neve no topo dos Atlas. Meu avô contou-me como, ao acordar com o toque da alvorada, os legionários eram obrigados a limpar a neve da frente das barracas com suas escovas de dente. Fazia parte do treinamento. Por que usar uma pá para limpar a neve quando se tem uma escova de dente?

Júlio nunca me falou se havia combatido em batalhas no deserto nem se teria atirado ou matado alguém, embora eu suspeite qual seja a resposta para as duas questões. Ele me contou que seu regimento tinha quatro baterias de artilharia e ele trabalhava numa delas. Cada canhão era operado por uma equipe de 12 legionários. Certa vez, não sei se em batalha ou treinamento, a bateria ao lado da sua explodiu. O obus explodiu dentro do cano matando todos os doze homens.

Na Legião só havia uma regalia. A comida e o vinho. O treinamento era duro, a disciplina ríspida e os riscos enormes. A válvula de escape era a cantina. Meu avô conta que a comida na Legião era muito boa, em nada comparada à bóia insossa do restante do exército. Não só a comida era boa, como podia-se comer a vontade. E o vinho também era servido sem restrições.

Meu avô sentia orgulho de ter sido legionário, o mesmo orgulho que sentia ao afirmar que ele era francês! Sentia orgulho de ter desfilado na avenida dos Champs-Élysées, em Paris, em 1931, no centenário da Legião. Apesar disto, confessou mais de uma vez que jamais teria suportado outros cinco anos como legionário. “É tempo demais”.


Coluna de legionários no norte da África, no início do século XX














A vida após a Legião

Ao se desligar da Legião, Júlio foi morar em Paris. Lá conheceu minha avó, Bárbara, que havia imigrado da Hungria. Eles se casaram em 1938 e passaram a Segunda Guerra na Paris ocupada pelos nazistas. Minha avó é judia. Foi lá que minha mãe nasceu. Elas sobreviveram por milagre. Em 1946, os três vieram para o Brasil .

Eu cresci ouvindo as histórias do meu avô, da sua vida na Legião, da vida na Paris ocupada, o Dia D, a chegada dos americanos, a liberação de Paris, a derrota nazista, o fim da guerra e a volta à Hungria para procurar familiares sobreviventes dos campos de concentração - não havia nenhum (leia mais em Minha família ressuscitou das cinzas de Auschwitz).

Suas memórias da Legião contaminaram minha infância. Foi quando comecei a alimentar o sonho de repetir os passos do meu grande herói e, um dia, também me tornar legionário.

Não era para ser. Jamais seria aceito. Eu era tremendamente míope. Não, esta é uma desculpa. A verdade é que quando fiz 18 anos, meus interesses eram outros. O sonho de infância não ultrapassou a adolescência.

Meu avô morreu aos 85 anos, em 30 de janeiro de 1996. Em 6 de setembro de 2010 (quando este artigo foi originalmente escrito), ele teria completado 100 anos. Ainda sinto sua falta. Nunca vou deixar de sentir.

Quando olho o meu filhinho de 7 anos, o Theo, vejo um moleque troncudo, forte e destemido. As costas largas, os brações, o espírito aventureiro, Theo herdou de mim - e eu do meu avô. Ao olhar meu filho, sinto estar descobrindo uma versão renovada de meu avô. Júlio teria adorado conhecer seu bisneto. E o Theo teria adorado brincar com o “bisô”.

Qualquer dia, quando Theo for maior, vou levá-lo ao cemitério da Consolação, no centro de São Paulo. É lá, no mausoléu dos ex-combatentes da França, que meu avô descansa. Vovô fez 100 anos. Parabéns, querido. 



segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Minha família renasceu das cinzas de Auschwitz

Metade da minha família foi assassinada pelos nazistas em Auschwitz. Os exterminadores destruíram qualquer prova de que, um dia, meus parentes tivessem se quer existido. Através da internet, informei suas identidades ao Museu do Holocausto. Passadas sete décadas desde seu desaparecimento, meus parentes saíram do limbo da inexistência.

PEDRO LUNA

A húngara Barbe Grosz tinha 18 anos quando viu sua mãe e seus quatro irmãos pela última vez. O encontro se deu em Paris, em 1938. Eles estavam reunidos para celebrar o casamento de Barbe com o ex-legionário estrangeiro, e também húngaro, Jules Antoine Lassu, então com 28 anos. Jules era cristão; Barbe e sua família, judeus. A família Grosz havia imigrado para a França em 1933, escapando da depressão mundial que atingiu de forma particularmente severa a Hungria. Não se adaptaram. Em 1938, resolveram voltar. A cerimônia de casamento foi também de despedida. Barbe e Jules iriam permanecer em Paris. Ninguém imaginava que a despedida seria para sempre. Depois do casamento, os pais de Barbe, Izabella e Ferencz (Francisco), e seus irmãos Karoy (Carlos), de 20 anos, Lajos (Luís), 13, Miklos (Miguel), 6, e a pequena Anna, de 4 anos, voltaram para Gyoma, uma pequena cidade no interior da Hungria. 

Em setembro de 1939, estourou a 2ª Guerra Mundial. O governo húngaro aliou-se aos nazistas e imediatamente começou restringir os direitos dos 700 mil judeus húngaros – um décimo da população. Em junho de 1940, os nazistas entraram em Paris - e começaram a fazer o mesmo com os 350 mil judeus franceses. Na condição de judia, Barbe tinha que costurar nas roupas uma estrela de David. Ela se recusou. Fez bem. Durante a ocupação, todos aqueles que obedeceram os nazistas e ostentavam a estrela de David no peito mais cedo ou mais tarde desapareceram. Em 1942, no pequeno apartamento no quarto andar de um predinho na Rue Bleue, 19, Barbe deu à luz a uma menina franzina chamada Sylviane Denise, minha mãe. Elas sobreviveram. 

Placa da Rue Bleue, em Paris, onde meus avós viveram.

 A guerra na Europa terminou em maio de 1945, quando os soviéticos tomaram Berlim. Em agosto, Jules foi à Hungria à procura dos parentes. De sua família, que vivia em Budapeste e era católica, boa parte sobreviveu. Já a pequena família de Barbe, não. Em 1943, quando os judeus húngaros já viviam confinados em guetos super-lotados, o pequeno Miklos morreu de tifo (o mesmo fim que teve a jovem holandesa Anne Frank). Em 1944, Karoy, o filho mais velho, foi deportado para fazer trabalho escravo na frente russa. Mal alimentado e mal vestido, Karoy morreu de frio como tantos milhares de judeus. Sobraram a minha bisavó, seu filho Lajos e pequena tia Anna. Eles permaneceram no gueto de Gyoma até março de 1944. Com a aproximação do Exército Vermelho, os nazistas correram para deportar os 700 mil judeus que ainda viviam na Hungria. Seu destino seria um novo campo de extermínio novinho em folha. Seria o maior e o mais eficiente de todos: Auschwitz, na Polônia ocupada. Para lá seguiram meus parentes. Lá eles foram assassinados e viraram cinza.


Em 2013, eu fui conhecer o local onde minha mãe nasceu
Em 1946, Bárbara, Júlio e Denise deram as costas ao Velho Mundo e embarcaram rumo a uma nova vida no Brasil. Fixaram-se em São Paulo. Meu querido avô e eterno herói, Júlio morreu em 1995, com 85 anos. Bárbara completou 94 anos em dia 6 de janeiro. Ela perdeu a lucidez. Em razão do mal de Alzheimer, a antiga velhinha bem-humorada agora passa os dias chamando por sua mãe, por seu pai e seus irmãos - e nos contando que está indo viajar para encontrá-los em Paris.

Foi Bárbara quem me contou, quando eu ainda era adolescente, a história do desaparecimento da sua família. No entanto, só hoje descobri que o desaparecimento da minha família não foi apenas físico. Foi absoluto. Não bastou aos nazistas matá-los. Eles foram obliterados da história. É como se jamais tivessem existido – a não ser nas lembranças de minha avó.

Esta revelação aconteceu meio que por acaso. Há cinco anos, portanto em 2009, estava eu terminando a leitura de Quem Escreverá nossa História? Os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, de Samuel D. Kassow (Ed. Companhia das Letras). Os arquivos do Gueto de Varsóvia são milhares de documentos que foram enterrados antes da destruição do gueto, em 1943, e desenterrados entre 1946 e 1950. Eles contam como viveram e morreram os 400 mil judeus poloneses lá confinados. Ler estes documentos é ter acesso à voz daqueles que desapareceram, é ouvir a versão dos mortos. Sobretudo, é conhecer nomes de pessoas que um dia existiram, mas cujos registros foram destruídos - não fosse pela existência destes preciosos arquivos.

O apartamento dos meus avós ficava no quarto andar.

“Será que há registros dos membros da minha família que morreram no Holocausto?”, pensei. A resposta deveria estar no site do Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém. Usando o mecanismo de busca do Yad Vashem, procurei por todas as variações possíveis do nome de minha bisavó: Izabella, Izabela, Isabela, Isabella... Schwartz, Schwarcz, Schwarz... Grosz, Gross... Nada. Não havia registro algum. A “Solução Final” implementada por Adolf Hitler para exterminar os judeus da Europa foi tão eficaz que incinerou os corpos e os registros de metade dos 6 milhões de judeus assassinados. É o que informa o Yad Vashem. Em outras palavras, 70 anos após o fim da 2ª Guerra, sabe-se apenas os nomes de três milhões de judeus mortos. Os outros três milhões, entre eles a minha família, para todos os efeitos jamais existiram. Eles são um número, um número estarrecedor, porém apenas um número - sem nome nem rosto nem história.

Decidi que com a minha família não seria mais assim. Liguei para a minha avó - que à época ainda não havia apresentado os primeiros sintomas de demência - e pedi para que soletrasse as grafias em húngaro dos nomes de sua mãe e seus irmãos. Perguntei sobre datas e locais de nascimento. Felizmente, Bárbara lembrava de quase tudo. Com as informações em mãos, submeti via Internet ao Yad Vashem cinco documentos, onde testemunho que, um dia, existiram cinco pessoas, Izabella e seus filhos Karoy, Lajos, Miklos e Anna. E que eram a minha bisavó e meus quatro tios-avós. Recebi do Yad Vashem, por email, cinco documentos no formato pdf que logo imprimi. Eles são numerados de 48.412, de minha bisavó Izabella, até 48.416, da pequena tia Anna, que tinha apenas 10 anos quando entrou na câmara de gás.

Estes números não são certidões de óbito. São atestados de vida. Eles atestam que minha família existiu. Minha avó está no fim da vida. Quando morrer, a memória de seus entes queridos partirá com ela. No entanto, desde hoje, no Yad Vashem, eles voltaram a viver.


Minha filha Victória e minha mãe Denise, e minha avó, Bárbara.
Post Scriptum: 

Quem muito acertadamente percebeu que omiti as informações sobre o paradeiro de Ferencz (pronuncia-se “férensi”), o meu bisavô, aí vai à resposta: ele sobreviveu. Em 1945, antes do fim da guerra, meu bisavô foi libertado pelo Exército Vermelho. Ele imaginava que a família estava morta – o que incluía a filha Barbe, que morava na França.


No fim de 1945, o Leste europeu era uma encruzilhada com milhões de refugiados tentando retornar aos seus lares. A casa de meu bisavô ficava no interior da Hungria. Se morasse em Budapeste, talvez tivesse tido a oportunidade de ter-se encontrado com o meu avô Júlio que, como disse, visitou a cidade naquele ano à procura de parentes.

Passaram-se 20 anos. Em 1965, do outro lado da Cortina de Ferro, dois amigos se encontraram em Budapeste e começaram a conversar. Durante a conversa, papo vai, papo vem, as fichas começaram a cair. Um dos interlocutores conhecia a família de meu avô Júlio. Ele sabia que meus avós viviam no Brasil. O outro conhecia um senhor judeu chamado Ferencz Grosz, que vivia na pequena Gyula, na fronteira com a Romênia. Ferencz havia se casado novamente e formado nova família. Mas Ferencz era o pai de Barbe.

Eu, obviamente, não lembro de nada disso. Tinha apenas dois anos. Mas sei que em 1965, minha avó recebeu uma carta do pai, que ela não via desde 1938 e acreditava morto há mais de 20 anos. Minha avó viajou de navio para a Europa para rever o pai. O mesmo caminho fez minha mãe. Em 1970, ela foi a Budapeste conhecer o avô. “No começo, os dois tiveram um estranhamento, ficaram se olhando sem saber o que fazer”, contou meu pai, que presenciou o encontro. “Mas, em pouco tempo, eles se abraçaram e começaram a chorar, o avô e a neta”.

Meu bisavô morreu em 1974. Ele tinha 80 anos. Deve ter morrido feliz.