Metade da minha família foi assassinada pelos nazistas em Auschwitz. Os exterminadores destruíram qualquer prova de que, um dia, meus parentes tivessem se quer existido. Através da internet, informei suas identidades ao Museu do Holocausto. Passadas sete décadas desde seu desaparecimento, meus parentes saíram do limbo da inexistência.
PEDRO LUNA
A húngara Barbe Grosz tinha 18 anos quando viu sua mãe e seus quatro irmãos pela última vez. O encontro se deu em Paris, em 1938. Eles estavam reunidos para celebrar o casamento de Barbe com o ex-legionário estrangeiro, e também húngaro, Jules Antoine Lassu, então com 28 anos. Jules era cristão; Barbe e sua família, judeus. A família Grosz havia imigrado para a França em 1933, escapando da depressão mundial que atingiu de forma particularmente severa a Hungria. Não se adaptaram. Em 1938, resolveram voltar. A cerimônia de casamento foi também de despedida. Barbe e Jules iriam permanecer em Paris. Ninguém imaginava que a despedida seria para sempre. Depois do casamento, os pais de Barbe, Izabella e Ferencz (Francisco), e seus irmãos Karoy (Carlos), de 20 anos, Lajos (Luís), 13, Miklos (Miguel), 6, e a pequena Anna, de 4 anos, voltaram para Gyoma, uma pequena cidade no interior da Hungria.
Em setembro de 1939, estourou a 2ª Guerra Mundial. O governo húngaro aliou-se aos nazistas e imediatamente começou restringir os direitos dos 700 mil judeus húngaros – um décimo da população. Em junho de 1940, os nazistas entraram em Paris - e começaram a fazer o mesmo com os 350 mil judeus franceses. Na condição de judia, Barbe tinha que costurar nas roupas uma estrela de David. Ela se recusou. Fez bem. Durante a ocupação, todos aqueles que obedeceram os nazistas e ostentavam a estrela de David no peito mais cedo ou mais tarde desapareceram. Em 1942, no pequeno apartamento no quarto andar de um predinho na Rue Bleue, 19, Barbe deu à luz a uma menina franzina chamada Sylviane Denise, minha mãe. Elas sobreviveram.
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Placa da Rue Bleue, em Paris, onde meus avós viveram.
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A guerra na Europa terminou em maio de 1945, quando os soviéticos tomaram Berlim. Em agosto, Jules foi à Hungria à procura dos parentes. De sua família, que vivia em Budapeste e era católica, boa parte sobreviveu. Já a pequena família de Barbe, não. Em 1943, quando os judeus húngaros já viviam confinados em guetos super-lotados, o pequeno Miklos morreu de tifo (o mesmo fim que teve a jovem holandesa Anne Frank). Em 1944, Karoy, o filho mais velho, foi deportado para fazer trabalho escravo na frente russa. Mal alimentado e mal vestido, Karoy morreu de frio como tantos milhares de judeus. Sobraram a minha bisavó, seu filho Lajos e pequena tia Anna. Eles permaneceram no gueto de Gyoma até março de 1944. Com a aproximação do Exército Vermelho, os nazistas correram para deportar os 700 mil judeus que ainda viviam na Hungria. Seu destino seria um novo campo de extermínio novinho em folha. Seria o maior e o mais eficiente de todos: Auschwitz, na Polônia ocupada. Para lá seguiram meus parentes. Lá eles foram assassinados e viraram cinza.
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Em 2013, eu fui conhecer o local onde minha mãe nasceu |
Em 1946, Bárbara, Júlio e Denise deram as costas ao Velho Mundo e embarcaram rumo a uma nova vida no Brasil. Fixaram-se em São Paulo. Meu querido avô e eterno herói, Júlio morreu em 1995, com 85 anos. Bárbara completou 94 anos em dia 6 de janeiro. Ela perdeu a lucidez. Em razão do mal de Alzheimer, a antiga velhinha bem-humorada agora passa os dias chamando por sua mãe, por seu pai e seus irmãos - e nos contando que está indo viajar para encontrá-los em Paris.
Foi Bárbara quem me contou, quando eu ainda era adolescente, a história do desaparecimento da sua família. No entanto, só hoje descobri que o desaparecimento da minha família não foi apenas físico. Foi absoluto. Não bastou aos nazistas matá-los. Eles foram obliterados da história. É como se jamais tivessem existido – a não ser nas lembranças de minha avó.
Esta revelação aconteceu meio que por acaso. Há cinco anos, portanto em 2009, estava eu terminando a leitura de Quem Escreverá nossa História? Os arquivos secretos do Gueto de Varsóvia, de Samuel D. Kassow (Ed. Companhia das Letras). Os arquivos do Gueto de Varsóvia são milhares de documentos que foram enterrados antes da destruição do gueto, em 1943, e desenterrados entre 1946 e 1950. Eles contam como viveram e morreram os 400 mil judeus poloneses lá confinados. Ler estes documentos é ter acesso à voz daqueles que desapareceram, é ouvir a versão dos mortos. Sobretudo, é conhecer nomes de pessoas que um dia existiram, mas cujos registros foram destruídos - não fosse pela existência destes preciosos arquivos.
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O apartamento dos meus avós ficava no quarto andar.
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“Será que há registros dos membros da minha família que morreram no Holocausto?”, pensei. A resposta deveria estar no site do Yad Vashem, o Museu do Holocausto, em Jerusalém. Usando o mecanismo de busca do Yad Vashem, procurei por todas as variações possíveis do nome de minha bisavó: Izabella, Izabela, Isabela, Isabella... Schwartz, Schwarcz, Schwarz... Grosz, Gross... Nada. Não havia registro algum. A “Solução Final” implementada por Adolf Hitler para exterminar os judeus da Europa foi tão eficaz que incinerou os corpos e os registros de metade dos 6 milhões de judeus assassinados. É o que informa o Yad Vashem. Em outras palavras, 70 anos após o fim da 2ª Guerra, sabe-se apenas os nomes de três milhões de judeus mortos. Os outros três milhões, entre eles a minha família, para todos os efeitos jamais existiram. Eles são um número, um número estarrecedor, porém apenas um número - sem nome nem rosto nem história.
Decidi que com a minha família não seria mais assim. Liguei para a minha avó - que à época ainda não havia apresentado os primeiros sintomas de demência - e pedi para que soletrasse as grafias em húngaro dos nomes de sua mãe e seus irmãos. Perguntei sobre datas e locais de nascimento. Felizmente, Bárbara lembrava de quase tudo. Com as informações em mãos, submeti via Internet ao Yad Vashem cinco documentos, onde testemunho que, um dia, existiram cinco pessoas, Izabella e seus filhos Karoy, Lajos, Miklos e Anna. E que eram a minha bisavó e meus quatro tios-avós. Recebi do Yad Vashem, por email, cinco documentos no formato pdf que logo imprimi. Eles são numerados de 48.412, de minha bisavó Izabella, até 48.416, da pequena tia Anna, que tinha apenas 10 anos quando entrou na câmara de gás.
Estes números não são certidões de óbito. São atestados de vida. Eles atestam que minha família existiu. Minha avó está no fim da vida. Quando morrer, a memória de seus entes queridos partirá com ela. No entanto, desde hoje, no Yad Vashem, eles voltaram a viver.
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Minha filha Victória e minha mãe Denise, e minha avó, Bárbara.
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Post Scriptum:
Quem muito acertadamente percebeu que omiti as informações sobre o paradeiro de Ferencz (pronuncia-se “férensi”), o meu bisavô, aí vai à resposta: ele sobreviveu. Em 1945, antes do fim da guerra, meu bisavô foi libertado pelo Exército Vermelho. Ele imaginava que a família estava morta – o que incluía a filha Barbe, que morava na França.
No fim de 1945, o Leste europeu era uma encruzilhada com milhões de refugiados tentando retornar aos seus lares. A casa de meu bisavô ficava no interior da Hungria. Se morasse em Budapeste, talvez tivesse tido a oportunidade de ter-se encontrado com o meu avô Júlio que, como disse, visitou a cidade naquele ano à procura de parentes.
Passaram-se 20 anos. Em 1965, do outro lado da Cortina de Ferro, dois amigos se encontraram em Budapeste e começaram a conversar. Durante a conversa, papo vai, papo vem, as fichas começaram a cair. Um dos interlocutores conhecia a família de meu avô Júlio. Ele sabia que meus avós viviam no Brasil. O outro conhecia um senhor judeu chamado Ferencz Grosz, que vivia na pequena Gyula, na fronteira com a Romênia. Ferencz havia se casado novamente e formado nova família. Mas Ferencz era o pai de Barbe.
Eu, obviamente, não lembro de nada disso. Tinha apenas dois anos. Mas sei que em 1965, minha avó recebeu uma carta do pai, que ela não via desde 1938 e acreditava morto há mais de 20 anos. Minha avó viajou de navio para a Europa para rever o pai. O mesmo caminho fez minha mãe. Em 1970, ela foi a Budapeste conhecer o avô. “No começo, os dois tiveram um estranhamento, ficaram se olhando sem saber o que fazer”, contou meu pai, que presenciou o encontro. “Mas, em pouco tempo, eles se abraçaram e começaram a chorar, o avô e a neta”.
Meu bisavô morreu em 1974. Ele tinha 80 anos. Deve ter morrido feliz.